sexta-feira, 21 de agosto de 2009

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

A PIOR ESCOLHA





TENTOU carreira como atriz de teatro. Depois disso foi para
a rua recuperar o tempo e o dinheiro perdido. Costumava
encontrá-la quase todo o fim-de-semana em uma esquina
próxima ao edifício onde morava. Acenava para ela, ela me
retribuía jogando um beijo. Mantínhamos um relacionamento
aberto. Ela sabia de cor todos os detalhes da minha vida. Por
várias vezes dividimos a mesma mesa tomando café da manhã
na padaria. Certa vez ela me convidou para ir até sua casa. Disse
que estava planejando re-decorar todo o interior e, não sei por
quê, achava que eu poderia ajudá-la nisso. Chegando lá a estória
era outra. Era casada e descobrira que o marido era infiel. Bebera
todo o vinho que era para me oferecer e tivemos que sair para
comprar outra garrafa. No caminho caiu no chão de joelhos,
chorando convulsivamente.
“Vê como me sinto?...”, ela disse entre soluços. “Aquele
patife... Amor é a pior escolha.”
Mais tarde ela me disse que foi bem ali, ajoelhada naquele chão
imundo, que ela decidiu seguir a carreira de atriz dramática.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

BONEQUINHA DE LUXO




Marlene liga mas está ocupado
Marlene soca o telefone
Agora ela vai precisar de todos
Está no fim da linha
O pânico tomando conta
O fôlego em baixa
O pulso fraco
Olha para a rua lá embaixo
Pensa nos vizinhos
Pensa nos pais que já morreram
Faz o sinal da cruz, recua
Bate com a cabeça na lâmpada
Resolve queimar as pontas do cabelo só pelo cheiro
Se livrou do gato e agora o quer de volta
Antigamente o problema era dos outros
e era ela quem dava ouvidos
Nunca se imaginou numa dessas
Pílulas resolvem,
mas pelo tanto de quilos que ela já perdeu...

terça-feira, 7 de julho de 2009

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

BAGAÇO




Leva um tempo pra domesticar essa garota
Estou olhando uns sapatos de um catálogo antigo
Ela está no banheiro, diante do espelho
contando os dentes que sobraram
Nenhum resquício de juventude
a não ser a idade
Estamos os dois metidos nesse barco
que era pra puxar pra terra
mas perdemos a rota, a corda e o juízo
Agora sou obrigado a fazer par com a descrença
e me guiar pelo vento
Ela pensa nos namorados que teve
Eu quero dinheiro

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

CARIDOSA




UM PASSEIO em volta da lagoa. Depois da caminhada, os
dois sentam em um bar para esticar a conversa. Um gesto
para o garçom e o pedido: guaraná, cerveja e um sanduíche de
pernil dividido ao meio que é para dois. Enquanto esperam,
discutem as alternativas. Ele expõe seu ponto de vista: se é para
ir para Londres que ao menos se vá acompanhada. Ela contraargumenta
dizendo que está em busca de experiências novas.
Ele insiste. Não quer que ela o deixe. Diz que Londres é uma
cidade úmida e fria. Ela responde: “Gosto de chuva e inverno.”
O assunto se esgota tão logo eles terminam o sanduíche e as
bebidas. Antes que os dois se levantem, ele tenta um beijo na
boca. Ela vira o rosto oferecendo uma bochecha em troca. Um
suspiro, não sei se dele ou se dela. Depois ela puxa as duas mãos
dele para perto, ainda naquela de se fazer de caridosa, pede
desculpas mas diz que tem outros planos. Tenta soltar as mãos
mas agora é ele que segura. Antes do adeus, uma pausa. Ele
espera que ela continue. Ela espera que ele desista.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

VAGABUNDO




BOLO na cara mas ele desvia. Ela grita “vagabundo” mas ele não
se sente ofendido. Na garagem, ela tenta amassar o carro com um
vaso mas o vaso se quebra cortando sua mão. Ela limpa o sangue
no vestido e continua a agressão, dessa vez com a vassoura. O
cabo se parte. Ele suporta a dor porque entre tantas dores não
seria aquela a pior. Ele corre para o banheiro. Ela esmurra a
porta. A criança acorda e chora mas ela continua esmurrando a
porta e berrando. Ele se senta na tampa da privada e espera. Ela
se cansa, senta no chão com as costas encostadas na porta. Ele
percebe a deixa, abre a porta e se agacha ao lado dela. Ela toma
seu pulso. Ele passa a mão pela testa dela. Ela reúne um resto de
força e lhe aplica um soco bem no queixo. Depois enche ele de
beijos arrependida. Mas aí ele já está desmaiado. A chance que
ela tanto queria...

domingo, 14 de junho de 2009

Texto da orelha do livro escrito por Marcal Aquino



Do amor e outras patologias

Marçal Aquino



Publicada inicialmente em livrinhos que evocavam, no formato, a literatura de cordel e atendiam por títulos tão sentenciosos quanto encantadores – Se você está nessa pra valer, você tem que agüentar as conseqüências; Lembre-se de que hoje é dia santo; Jesus há de estar do meu lado –, a ficção de Sérgio Puccini sempre teve na observação dos relacionamentos amorosos sua linha de força mais importante.

Arranjadas em conjunto neste Amanhã. Aqui. Nesse mesmo lugar, essas narrativas breves, por vezes brevíssimas, realizam uma espécie de inventário do entulho conjugal que se acumula, inevitável, quando dois (ou mais) seres se encontram dispostos a compartilhar afetos e neuroses. É como se o amor, em sua condição de patologia, fosse examinado sob a lente de um microscópio. Com uma predileção quase obsessiva pelo detalhe, Sérgio Puccini se vale do flash para flagrar casais perplexos no momento em que o poético do amor se degrada e cede lugar ao patético.

É de situações corriqueiras, quase prosaicas, que o escritor extrai a matéria-prima de seus contos. E a linguagem enxuta com que dá forma aos relatos serve para tensionar ao limite os embates que focaliza. Como um correspondente de guerra que mandasse, em linguagem telegráfica, notícias do front sentimental. Puro osso.

Aqui, na maioria das vezes, o que conta é o que não se conta, sendo o omitido tão importante quanto o que é narrado. Mais do que exercitar a velha técnica do ‘iceberg’, de que falava mestre Hemingway, Sérgio Puccini leva às últimas conseqüências uma estratégia de miniaturista, na qual sutis pinceladas são mais que suficientes para oferecer aos nossos olhos os contornos precisos dos personagens e situações. Literatura minimalista, porém substantiva.

Na melhor tradição do americano Raymond Carver (1939-1988), outro que tinha apreço pelos títulos derramados, que acabavam por se contrapor ao texto contido, e do nosso Dalton Trevisan, o autor de Amanhã. Aqui. Nesse mesmo lugar exibe voz própria ao criar um painel sobre as misérias e mesquinharias que cercam um relacionamento afetivo. Cronista das trincheiras conflagradas do amor, ele combina com habilidade o poder do observador atento com a potência da concisão para estabelecer seu território literário. Um território por onde transitam criaturas esmagadas pelo peso de sua humanidade e trespassadas pela certeza de que, na guerra conjugal, todas as armas são aceitas e só não vale ter medo do ridículo – o que, por sinal, sabe muito bem quem um dia já se arriscou no jogo do amor.

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

DE PAI PARA FILHO




WARLEY é um próspero dono de uma concessionária. Tem
mulher e filhos os quais maltrata com regularidade. Warley
aprendeu o ofício muito cedo. Quando criança já via seu pai
espancar sua mãe ao final de quase todo o dia. Cinta, cabo
de vassoura e até um pequeno estilete eram os instrumentos
preferidos por seu pai. Sua mãe culpava a bebida. Warley não
bebe. O que é motivo de orgulho para sua esposa.

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

CARIDOSA




UM PASSEIO em volta da lagoa. Depois da caminhada, os
dois sentam em um bar para esticar a conversa. Um gesto
para o garçom e o pedido: guaraná, cerveja e um sanduíche de
pernil dividido ao meio que é para dois. Enquanto esperam,
discutem as alternativas. Ele expõe seu ponto de vista: se é para
ir para Londres que ao menos se vá acompanhada. Ela contraargumenta
dizendo que está em busca de experiências novas.
Ele insiste. Não quer que ela o deixe. Diz que Londres é uma
cidade úmida e fria. Ela responde: “Gosto de chuva e inverno.”
O assunto se esgota tão logo eles terminam o sanduíche e as
bebidas. Antes que os dois se levantem, ele tenta um beijo na
boca. Ela vira o rosto oferecendo uma bochecha em troca. Um
suspiro, não sei se dele ou se dela. Depois ela puxa as duas mãos
dele para perto, ainda naquela de se fazer de caridosa, pede
desculpas mas diz que tem outros planos. Tenta soltar as mãos
mas agora é ele que segura. Antes do adeus, uma pausa. Ele
espera que ela continue. Ela espera que ele desista.

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

CONCLUSÃO




O apaixonado é um chato.

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

VINGANÇA




Pó de guaraná vencido:
Esparrama por cima da mesa
fazendo-se de desentendida.
Noite acaba com uma nota triste
mas não é ela quem toca.
Murmurinho atrás da porta.
Casal recolhido para diversões íntimas
mas é ela quem paga as contas.
Amiga que faz visita
acaba roubando o namorado.
Mas ela tem um plano
que, aliás, não tem nada a ver
com o veneno de rato
que ela ingeriu agora há pouco.

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

RESSACA




Dessa vez eu estou no estacionamento.
Parado, sem carro mas com as chaves no bolso.
Olhando discretamente para as pessoas que passam.
Fazendo um rápido reconhecimento das placas.
Seu casaco de sobra no ombro.
Nenhum cigarro, não fumo.
Um pensamento vago
e milhares de anjinhos circulando minha cabeça.
Quero ter todos os carros do mundo
mas no momento só me ocupo em andar.
Quero ter todas as mulheres do mundo
e você quase chegou a ser todas elas.
No bolso, ainda
o pé de plástico da taça de vinho.
Lembrança da última festa.
Fim do dia, quase noite.
Veja onde vim parar.
Nenhum sentimento que me ligue.
O ar que eu vomito
e que me traz de volta...
Saiba que por partes eu existo.

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR


ESSA NOITE OUTRA VEZ...




MADRUGADA corre. Garota esmurrando a porta do
vizinho.
“Abre a porta, seu merda!”
Apartamento vazio. Na certa, algum engano, para a sorte
de quem deveria estar do outro lado.
Eu abro a minha porta, meto a cabeça para fora. Ela me
olha.
“Ele não está”, digo.
“Quem é você?”, ela diz.
Eu digo:
“Ele não está”, e fecho a porta.
De dentro, consigo ouvir os passos dela andando em círculos
pelo pequeno espaço do corredor, enquanto coça a cabeça e solta
mais alguns palavrões. Decido dar mais uma chance. Ponho a
cara para fora e pergunto:
“O que você está esperando?”
Ela me responde mostrando o dedo.
“Não tem ninguém nesse apartamento”, eu digo.
“Como você sabe?”
“Moro aqui.”
“Eu não te conheço.”
“Certamente que não. Mas moro aqui.”
Ela ainda dá mais algumas voltas e estanca. Parece exausta.
“Já que é assim...”, ela diz abrindo os braços.
Segue um silêncio curto.
“Vê se se acalma. Toma um café que passa”, eu digo. E
quando me viro para fechar a porta, ela já está ali parada, bem
debaixo do batente.
“Pensei que fosse um convite”, ela diz.
“EI, QUE cheiro é esse?”, ela diz tão logo pisa dentro do meu
apartamento.
“Cheiro?”, eu não sei do que ela está falando.
“Você tem gato?”
Digo que não balançando a cabeça.
“Tem namorada?”
Repito o gesto com a cabeça.
“Quem é que cuida de você?”
“Eu mesmo cuido de mim.”
Ela se joga no sofá.
“Que espécie de sofá é esse?”
Ela parece se sentir à vontade. Chuta fora as sandálias para
se deitar. Por um instante eu fico sem saber o que fazer.
“E aquele café?”, ela diz me trazendo de volta.
Eu corro até a cozinha para constatar que não tem mais pó.
“Acabou”, eu digo a ela.
“Acabou?”, ela sai do sofá.
“Pois é, acabou. Não tem mais pó.”
“Você não me chamou para tomar café?”
“Eu não imaginava que você fosse aceitar.”
“E não tem mais nada que substitua o café?”
Antes que eu diga qualquer coisa ela descobre uma garrafa
de vinho em cima da geladeira.
“Ei...”, ela diz ao descobrir a garrafa.
Ela se estica para pegar mas a altura não dá.
“Será que você alcança?”, ela diz apontando a garrafa.
“Você quer beber vinho?”
“Eu bebo qualquer coisa.”
Eu penso em uma outra opção já querendo me livrar dela.
“Faz uma coisa. Eu te dou essa garrafa de vinho. Leva ela
com você”, eu digo.
“Levar para onde?”, ela diz.
“Para a sua casa.”
“Eu não tenho casa.”
Mas eu não acredito:
“Como não tem casa?”
“Vim aqui para ficar com esse cara e esse cara me deu o
fora.”
Um fio de desconfiança corre pela minha mente.
“O que você acha?”, ela diz.
“Sobre o que?”
“Sobre tudo isso? Você teria coragem de me dispensar?”
“Eu não sei.”
“Pois é isso. Ele me dispensou.”
Ela volta a se esticar no sofá.
“Tô me sentindo um caco”, ela diz.
Tento contornar a situação.
“Escuta... Tá legal, se você quiser ficar por aqui essa noite,
tudo bem, eu não me importo”, eu digo.
“Eu não disse que queria ficar com você. Foi você quem me
chamou para dentro.”
“Faça como você quiser.”
“Se você não quer o vinho, eu não faço questão.”
“Tudo bem. Nós vamos tomar o vinho.”
“Legal.” Ela pula do sofá.
“Espera só um instante”, ela diz se encaminhando para a
porta de entrada.
“Aonde você vai?”, pergunto.
“Tem um carro me esperando lá embaixo.”
Ela desce sem dar tempo de meter as sandálias. Eu espero.
Ela demora. Espero um pouco mais. Nem sinal. Acabo dormindo
ali mesmo, no sofá.

NA MANHÃ seguinte, acordo e dou de cara com a garrafa de
vinho vazia, mais dois copos sujos deixados do lado e um bilhete
debaixo de um deles:
“Essa noite, outra vez...”

AMANHÃ. AQUI. NESSE MESMO LUGAR

Sérgio Puccini


Primeiro livro publicado pelo autor, reúne 38 histórias breves que por vezes esbarram na poesia. Prosas rápidas que retratam situações do cotidiano, às vezes absurdas, vividas por personagens anônimos que transitam, entre a dor e o desejo, por madrugadas frias, apartamentos fechados, hospitais, lanchonetes e padarias de esquina.


“É de situações corriqueiras, quase prosaicas, que o escritor extrai a matéria-prima de seus contos. E a linguagem enxuta com que dá forma aos relatos serve para tensionar ao limite os embates que focaliza. Como um correspondente de guerra que mandasse, em linguagem telegráfica, notícias do front sentimental. Puro osso.”

(Marçal Aquino, trecho texto de orelha)


R$ 27,90

Brochura

92 páginas; 14 x 21cm

Publicação: julho 2008

Edição do Autor

ISBN 978-85-908220-1-1

Contato: javalipro@yahoo.com.br


excertos




“Tudo por causa de um anel de brilhante...”, a prima disse.

Um anel de brilhante... Isso me fez olhar para as mãos dela. Não vi nenhum anel mas dei pela falta de um dos dedos. Ela percebeu. Tentou esconder a mão mas acabou derrubando um copo. Tentei ajudá-la com os cacos mas ela segurou forte a minha mão e me disse:

“Por favor, não!”

(trecho A escandalosa Esther Williams)


Bolo na cara mas ele desvia. Ela grita “vagabundo” mas ele não se sente ofendido. Na garagem, ela tenta amassar o carro com um vaso mas o vaso se quebra cortando sua mão. Ela limpa o sangue no vestido e continua a agressão, dessa vez com a vassoura. O cabo se parte. Ele suporta a dor porque entre tantas dores não seria aquela a pior.

(trecho Vagabundo)


Como sempre, ela é a primeira a tomar a frente. Pula da cama catando as roupas pelo chão. Ele ainda pensa na conversa da noite anterior. Mais uma vez sente o nó no estômago. Ela abre a janela e confere o tempo enquanto ele ainda busca suas roupas. Ela olha para o relógio fazendo o comentário de sempre, “rápido, antes que a vida acabe...”, enquanto ele ainda sofre tentando encaixar as peças.

(trecho A história da escada rolante)


Chamou pela mulher. Sabia que estava lá. Gritou seu nome. Nenhum sinal. Recuou. Olhou em volta da casa. Janelas fechadas com tranca forte. Lembrou das grades contra ladrão. Do cachorro que morreu engasgado com osso. Controlou a tremedeira. Não sabia se de raiva ou de frio. Encostou as costas no pilar da varanda. Tentou relaxar. De todos os lugares do mundo aquele era sua pior escolha.

(trecho O forte e o fraco)